segunda-feira, 6 de maio de 2013

Entre bengaladas e palavrões



Algumas coisas só acontecem comigo mesmo, não tem jeito, mas virar alvo de bengala de velho cego já é demais.

Ops! Velho não! Dizer velho cego não pode, senão os xiitas do politicamente correto esculacham a gente, chamando de velhofóbico, cegofóbico, bengalofóbico ou qualquercoisofóbico que o valha. Retificando, então, tratava-se de um senhor da terceira idade com restrições visuais e, consequentemente, portador de necessidades especiais, armado com uma sombrinha grande numa mão e uma bengala de madeira, daquelas rústicas, mais grossas, na outra.

Meu escritório ficava em Vitória, exatamente no 236 da Rua Sete, e acabei me acostumando com o lugar que, confesso, ainda lembro com uma nostalgia deliciosa. Gosto de vagar pela Rua Sete e adjacências sem compromisso, olhando o comércio, vendo os “tipos” e imaginando quantas vezes já topei com Edson Papo Furado, Gilbert Chaudanne, Gobbi e tantas outras personalidades que costumavam desfilar de peito aberto por ali, se sentindo em casa, como de fato sempre estiveram.

Atualmente vou pouco a Vitória, mas hoje tive que comparecer a uma Sessão Extraordinária do Tribunal Regional do Trabalho e, cumprido o compromisso, resolvi levar meu celular para um reparo ali na Costa Pereira. O John, técnico dos mais competentes, me prometeu entregar o aparelho em uma hora, tempo suficiente para uma perambulada.

Saí da Costa Pereira pegando a Graciano Neves e logo ali, em frente à Expressa, começou meu drama. O tal idoso perguntava a duas senhorinhas como fazer para chegar à churrascaria Senna e eu, bom e educado moço que sou, me dispus a ajudar.

Acostumado, desde sempre, a conviver com os deficientes visuais (viram que fino?), me lembrei de algumas regras básicas: não falar muito alto (eles são cegos, não surdos), não trata-los como aberrações e, sobretudo, jamais, em hipótese alguma mesmo, tentar pegar um cego pelo braço. Se ele precisar vai tocar no seu ombro com a mão que não segura a bengala e se orientar bem, mas tocar, nem pensar.

Ocorre que o “meu” cego estava, como disse, com duas bengalas, uma em cada mão e, para piorar, não tinha o menor sendo de direção. O ceguinho andava como se fosse um carro com pneu furado, “puxando” para a esquerda. O problema é que o lado esquerdo daquela calçada, até chegar à galeria que fica ao lado do Banestes, onde a gente cruza para chegar ao destino do idoso, é um terror, com declives horríveis servindo de entradas de garagens.

Aí é que lascou de vez: eu via o perigo, falava com o velho “direita” e ele virava para a esquerda; “vai reto”, ele virava para a esquerda; cuidado, ele virava para a esquerda. Numa rampa maior e mais íngreme achei que o velho fosse se estatelar e não aguentei: segurei forte o braço dele e puxei. A resposta foi uma leve bengalada na canela, que achei que fosse não intencional.

Mais adiante chegamos à entrada da galeria e acabei levantando o tom de voz para alertá-lo de um carrinho de mão que a bengala não detectava e a sombrinha marcou presença no meu sapato (essa eu desconfiei que foi de propósito).

O lado esquerdo da galeria, por onde o diabo do velho insistia em passar, era o pior, cheio de obstáculos e eu, calmamente, o alertei: direita meu senhor, direita, donde o raio do cego berra: “direta é o cacete!!”. Eu ainda insisti: “como, meu senhor?”. “Come nada, você é safado e direta é o cacete!!!”

Daí em diante foi um festival de bengala e sombrinha chispando o ar de fazer inveja a d'Artagnan e todos os mosqueteiros ele andasse ao som de palavrões que eu nem sabia que existia. Enquanto a bengala de madeira grossa vinha feito hélice por cima, a sombrinha virava lança por baixo. O velho e suas armas pareciam ter se multiplicado.

Eu? Eu corri, gente. E corro mesmo.

Juro que não sei o que fiz para despertar a ira do velho cego esquerdista e estou assustado até agora, mas tenho certeza de que se encontrar com ele de novo só terei uma reação: correr!