Algumas coisas só acontecem comigo mesmo, não tem jeito, mas virar alvo
de bengala de velho cego já é demais.
Ops! Velho não! Dizer velho cego não pode, senão os xiitas do
politicamente correto esculacham a gente, chamando de velhofóbico, cegofóbico,
bengalofóbico ou qualquercoisofóbico que o valha. Retificando, então,
tratava-se de um senhor da terceira idade com restrições visuais e,
consequentemente, portador de necessidades especiais, armado com uma sombrinha
grande numa mão e uma bengala de madeira, daquelas rústicas, mais grossas, na
outra.
Meu escritório ficava em Vitória, exatamente no 236 da Rua Sete, e
acabei me acostumando com o lugar que, confesso, ainda lembro com uma nostalgia
deliciosa. Gosto de vagar pela Rua Sete e adjacências sem compromisso, olhando o comércio,
vendo os “tipos” e imaginando quantas vezes já topei com Edson Papo Furado, Gilbert
Chaudanne, Gobbi e tantas outras personalidades que costumavam desfilar de
peito aberto por ali, se sentindo em casa, como de fato sempre estiveram.
Atualmente vou pouco a Vitória, mas hoje tive que comparecer a uma Sessão
Extraordinária do Tribunal Regional do Trabalho e, cumprido o compromisso,
resolvi levar meu celular para um reparo ali na Costa Pereira. O John, técnico
dos mais competentes, me prometeu entregar o aparelho em uma hora, tempo
suficiente para uma perambulada.
Saí da Costa Pereira pegando a Graciano Neves e logo ali, em frente à
Expressa, começou meu drama. O tal idoso perguntava a duas senhorinhas como
fazer para chegar à churrascaria Senna e eu, bom e educado moço que sou, me
dispus a ajudar.
Acostumado, desde sempre, a conviver com os deficientes visuais (viram
que fino?), me lembrei de algumas regras básicas: não falar muito alto (eles
são cegos, não surdos), não trata-los como aberrações e, sobretudo, jamais, em
hipótese alguma mesmo, tentar pegar um cego pelo braço. Se ele precisar vai
tocar no seu ombro com a mão que não segura a bengala e se orientar bem, mas
tocar, nem pensar.
Ocorre que o “meu” cego estava, como disse, com duas bengalas, uma em
cada mão e, para piorar, não tinha o menor sendo de direção. O ceguinho andava
como se fosse um carro com pneu furado, “puxando” para a esquerda. O problema é
que o lado esquerdo daquela calçada, até chegar à galeria que fica ao lado do
Banestes, onde a gente cruza para chegar ao destino do idoso, é um terror, com declives
horríveis servindo de entradas de garagens.
Aí é que lascou de vez: eu via o perigo, falava com o velho “direita” e
ele virava para a esquerda; “vai reto”, ele virava para a esquerda; cuidado, ele
virava para a esquerda. Numa rampa maior e mais íngreme achei que o velho fosse
se estatelar e não aguentei: segurei forte o braço dele e puxei. A resposta foi
uma leve bengalada na canela, que achei que fosse não intencional.
Mais adiante chegamos à entrada da galeria e acabei levantando o tom de
voz para alertá-lo de um carrinho de mão que a bengala não detectava e a
sombrinha marcou presença no meu sapato (essa eu desconfiei que foi de
propósito).
O lado esquerdo da galeria, por onde o diabo do velho insistia em
passar, era o pior, cheio de obstáculos e eu, calmamente, o alertei: direita
meu senhor, direita, donde o raio do cego berra: “direta é o cacete!!”. Eu
ainda insisti: “como, meu senhor?”. “Come nada, você é safado e direta é o
cacete!!!”
Daí em diante foi um festival de bengala e sombrinha chispando o ar de
fazer inveja a d'Artagnan e todos os mosqueteiros ele andasse ao som de palavrões que eu nem sabia que existia. Enquanto a
bengala de madeira grossa vinha feito hélice por cima, a sombrinha virava lança
por baixo. O velho e suas armas pareciam ter se multiplicado.
Eu? Eu corri, gente. E corro mesmo.
Juro que não sei o que fiz para despertar a ira do velho cego
esquerdista e estou assustado até agora, mas tenho certeza de que se encontrar
com ele de novo só terei uma reação: correr!
Adorei!
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