sexta-feira, 13 de maio de 2011




BELEZA AMERICANA

UM FILME QUE É UMA AULA SOBRE O PRECONCEITO




O preconceito não tem cor, não tem cheiro, não tem forma geométrica ou corpo. Apesar disto, poucas coisas estão presentes em nossas vidas como ele.

Apesar de e até pelo próprio fato de ser assim, o preconceito permite as mais variadas visões, inclusive nas artes plásticas, poesias e no cinema.

O objetivo do presente trabalho é, com fundamento em HELLER (2000), analisar a questão do preconceito e sua manifestação em uma cena do filme BELEZA AMERICANA (1999).

American beauty é um tipo de rosa muito cultivada nos Estados Unidos, com uma peculiaridade: ela não possui espinhos nem cheiro, uma metáfora sobre o vazio do americano comum.

No filme, Lester Burham (Kevin Spacey) não aguenta mais o emprego e se sente impotente perante sua vida. Casado com Carolyn (Annette Bening) e pai da "aborrecente" Jane (Tora Birch), o melhor momento de seu dia é quando se masturba no chuveiro. Este publicitário quarentão tem uma vida certinha e totalmente dentro do padrão ideal americano: emprego, mulher, casa e carro. Mas, de repente, descobre que a liberdade é na realidade seu maior sonho.

Um dia conhece Angela Hayes (Mena Suvari), amiga de Jane. Encantado com sua beleza e disposto a dar a volta por cima, Lester pede demissão e começa a reconstruir sua vida, com a ajuda de seu vizinho Ricky (Wes Bentley), filho do militar aposentado Coronel Fitts (Chris Cooper), que definitivamente não aprova a amizade de seu jovem filho com o “quarentão” vizinho.

Numa das cenas a questão do preconceito é mostrada de forma ostensiva: De sua janela o Coronel Fitts vê o seu filho Ricky abaixando-se próximo a Lester que, deitado sem camisa em um divã com uma expressão prazerosa na face.

No pensamento do coronel seu filho praticava sexo oral no vizinho, devendo-se a isto a expressão de prazer estampada em seu rosto.

O que realmente ocorria é que Lester não conseguia enrolar o cigarro de maconha que fumaria com Ricky, que senta-se próximo a ele e abaixa-se para “enrolar o baseado”, fugindo do campo de visão do pai.

O PRECONCEITO


Para HELLER (2000) “o preconceito é a categoria do pensamento e do comportamento cotidianos”. No Dicionário Aurélio (1999) aparece com a seguinte definição: “1. conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos; idéia pré-concebida”

No nosso dia a dia praticamos atos tão distintos e passamos por tantas situações diferentes que é impossível não agir a partir de uma formulação de idéias prévia. Se um sinal de trânsito está fechado atravessamos a rua com tranqüilidade, pois temos a concepção prévia de que o automóvel que trafega por aquela via irá parar antes da faixa de pedestres. Oferecemos um doce a uma criança, pois em nosso pensamento ela irá gostar da oferenda.

O problema é que nem sempre os carros param ao sinal vermelho e nem todas as crianças se interessam por balas, o que pode levar a situações drásticas e constrangedoras.

No filme analisado o preconceito é a tônica: o casamento persiste não porque é bom ou porque os protagonistas gostam de viver juntos, mas porque isto é um dever social. Trabalha-se não para realizar sonhos, mas para manter um status.

Quando o protagonista (Lester) resolve abrir mão de conceitos e pensamentos a si impingidos, agindo conforme sua análise pessoal dos fatos, entra num universo problemático, em que as regras são estabelecidas durante o jogo e mudam a cada instante.

No mundo das regras prévias ele não pode namorar a amiga de sua filha porque ela é bem mais nova que ele e porque ele é casado. Ele não pode largar seu emprego porque na escala social tem “o” emprego. Sua vontade de trabalhar como vendedor de lanches não vale a pena.

Acreditar em conceitos previamente formulados é, de certa forma, confortável. Nesta linha, o preconceito age de forma semelhante à fé: temos a necessidade de crer em algo que nos conforte e nos confortamos porque agimos conforme as regras da nossa fé.

Na cena do filme em destaque é, de certa forma, confortável ao Coronel saber que seu filho é homossexual e pratica felação com o vizinho, mesmo que isto em verdade não ocorra. Com efeito, o bem maior para ele é dar ordens ao filho e ter suas ordens acatadas, o que somente não ocorreria se ele fosse um anormal. Na sua visão um homossexual é um anormal e seu filho, sendo um homossexual é um anormal, o que justifica o fato de não aceitar as ordens do pai. Ter uma explicação para uma ocorrência contrária às nossas expectativas não deixa de ser confortável.

Por outro lado, Lester vacila ao demonstrar sua fulminante paixão pela jovem amiga de sua filha, pois tem como certo que adolescentes não se relacionam com adultos. Esta fé, esta crença impede seu desgaste e evita, na sua prévia concepção, que ele sofra um desgaste ou uma decepção. Ele não age como quer, mas tem o conforto de saber que não era para agir mesmo. Como bem afirma HELLER (2000), “crer em preconceitos é cômodo porque nos protege de conflitos”.

Já o relacionamento de Lester com Ricky está baseado (sem trocadilhos) na confiança. Um se lança em direção ao outro porque sabem o que esperar um do outro. Eles assumem uma postura de diferença em relação à sociedade de uma forma geral, agindo em conformidade com o que pensam. Esta semelhança de pensamentos, que parte do plano da consciência, faz com que tenham, um em relação ao outro, o conceito prévio de que não serão atingidos um pelo outro. Confia-se com base em experiências passadas e projeta-se a crença para o futuro. O fato de serem usuários de maconha, e de se tratar de uma substância proibida, por exemplo, faz com que um “imagine” que o outro não irá chamar a autoridade policial, já que ambos partilham do mesmo prazer.

Igualmente à fé, a confiança também tem o condão de gerar tranqüilidade e segurança ao homem. A diferença está no fato de uma (a fé) ir de encontro ao que realmente se sabe e a outra (a confiança) ir ao encontro do saber. Na fé não se sabe, mas se acredita. Na confiança se acredita porque, com base em uma construção lógica (experiências passadas, associações etc), se sabe.

É de extrema relevância destacar, com base em HELLER (2000) que a maioria dos preconceitos são obra da classe dominante, ou seja, produtos da ideologia. Como bem afirma GUARESCHI (2002), “a ideologia, no seu dia-a-dia, vai criando significados, sentidos, definições de determinadas realidades. Esses significados e sentidos tem sempre uma conotação de valor”. O valor, é óbvio, é tido como bom quando interessa à classe dominante e ruim quando não.

Nesta linha podemos afirmar, com HELLER (2002), que o preconceito impede a autonomia do homem. Note-se que um homem que age exclusivamente com base no que acreditava antes da ação acaba por não ter condição de extrair da ação em si um novo ensinamento. Ora, não se aprende o que já sabe e, se já se sabe, por que notar o novo? O homem torna-se, desta forma, prisioneiro de suas crenças e conceitos, deixando de agir conforme a situação exige e agindo exclusivamente da forma que considerava correta com base em sua própria ideologia, que pode ou não corresponder à verdade. 

Há que se discutir, ainda, a questão da intolerância. No filme em destaque o Coronel assassina Lester. O motivo? Não suportava a relação que este mantinha com seu filho. A idéia de que o filho, treinado para enxergar no pai uma figura suprema, pudesse ter apreço por outro homem era insuportável para ele. Não suportar a idéia, o pensamento, o comportamento e determinadas característica do outro, pelo simples fato de serem diferentes das nossas é o que podemos chamar de intolerância.

HELLER (2000), no entanto, nos lembra que a intolerância não é necessariamente ruim. De se ver que quando se adota a tolerância como forma constante de comportamento assume-se uma posição passiva. O homem que simplesmente aceita tudo o que vem do outro não constrói a si mesmo e corre o sério risco de tornar-se escravo da ideologia.

A partir do momento em que construímos nossas idéias e formamos nossa concepção da realidade, o excesso da tolerância pode significar abrir mão do que conquistamos. Por outro lado, quando toleramos na medida certa ficamos abertos à realidade do outro, que pode servir até como complemento ou forma de robustecer a nossa própria visão.

Fato é que viver dirigido pelo preconceito, com a intolerância no encalço todo o tempo, é uma forma de ter a liberdade de escolha reduzida, estreitando a margem real de alternativas de vida.

O protagonista do filme, Lester, resolve se libertar de seus preconceitos e viver conforme suas próprias escolhas. Paga com a própria vida. Não é fácil desafiar o cotidiano.

Não há uma fórmula pré-estabelecida para fazer com que o homem abra mão de seus preconceitos, até porque nem sempre ele realmente sabe que está agindo de forma preconceituosa.

Muitas vezes esta noção somente vem depois. Somente quando passamos a enxergar sob um outro ponto de vista é que temos a noção de que sustentávamos uma idéia preconceituosa, que mantínhamos e éramos mantidos por um preconceito.

Quando se cansa de seu vazio Lester enxerga que a mulher o traia, que seu emprego não lhe dava satisfação, que sua vida era realmente como a flor que empresta o nome ao título do filme: linda, mas sem cheiro e sem espinhos.

Abrir mão do preconceito é enfrentar o que BERGER e LUCKMAN (2002) chamam de mundo problemático, abrir mão da realidade da vida cotidiana, que não requer maior verificação e que se apresenta como real. É menos problemático impedir que um excelente jogador de futebol homossexual ingresse no nosso time do que lidar com o medo (absurdo) de ser “atacado” por ele no vestiário.

Abrir mão do preconceito é abrir mão de nossas próprias verdades ou, melhor dizendo, daquilo que aceitamos como verdade. Isto é doloroso. Sair da caverna, como nos lembra Platão, envolve dor nos olhos e nos músculos atrofiados pelo desuso.


CONCLUSÃO


Feita a análise acima, podemos concluir que o homem somente pode ser realmente alguém quando se dispõe a correr o enorme risco de enxergar a realidade em todos os seus aspectos, abrindo mão da visão ilusória previamente preparada por nós mesmos e que nos aprisiona.

Já disseram que viver é correr riscos e temos a convicção de que somente retirando a película protetora que colocamos sobre as pessoas e as coisas podemos realmente absorver o melhor de tudo.

Se, por exemplo, partimos da concepção prévia de que apenas os brasileiros são capazes de fazer alguma coisa pelo nosso país, perdemos a grande oportunidade de aprender muito da vida, das pessoas e do nosso próprio povo com uma chilena, que tendo nascido em uma outra paragem, nos oferece muito mais conhecimento do que seriamos capazes de supor.




REFERÊNCIAS


BELEZA americana. Direção: Sam Mendes. Produção: Bruce Cohen, Dan Jinks, Alan Ball e Stan Wlodkowski. Roteiro: Allan Ball. Intérpretes: Kevin Spacey, Annette Bening, Thora Birch, Wes Bentley, Mena Suvari, Peter Gallagher, Chris Cooper, Allison Janney. Estados Unidos: DreamWorks SKG; DreamWorks Distribution / UIP, 1999, 1 filme (121min).

BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Preconceito. In: NOVO aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. São Paulo, Nova Fronteira, 1999. p. 1625.

GUARESCHI, Pedrinho A., Relações comunitárias relações de dominação. In: CAMPOS, Regina Helena de Freitas (Org.). Psicologia social e comunitária: da solidariedade à autonomia. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 81-99.

HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

PLATÃO. A república. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 2002.

4 comentários:

  1. Muito interessante, inclusive vale lembrar que "preconceito" é uma nominalização, ou seja, engessa-se um verbo em um substantivo. É impossível "largar o preconceito", mas é possível para de pré-conceber

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  2. Poucos são capazes de captar com tanta leveza a essência de uma obra que tanto contribui para a cultura e desenvolvimento emocional do ser humano. Um texto que revela a excelência daquele que escreve tomado pela razão e sensibilidade. Gostei muito!

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  3. Gostei!
    Esta frase com certeza fará parte do meu artigo:
    "Abrir mão do preconceito é enfrentar o que BERGER e LUCKMAN (2002) chamam de mundo problemático, abrir mão da realidade da vida cotidiana, que não requer maior verificação e que se apresenta como real."

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