terça-feira, 31 de maio de 2011

Ideologia, Escola e Linguagem




IDEOLOGIA

Uma das formas mais seguras e eficazes de que pode se valer um determinado grupo para exercer dominação sobre outro é impor seus ideais, cultura, valores, enfim, sua ideologia.

Segundo CHAUI uma das características da ideologia é gerar a “a suposição de que as idéias existem em si e por si mesmas desde toda a eternidade” sendo, conseqüentemente, inquestionáveis. Afinal, de que vale ao homem questionar o que é pertencente à natureza? Por que razão alguém precisaria se voltar contra algo que sempre foi daquele jeito e que, portanto, é imutável?

Ainda segundo a filósofa “o que torna objetivamente possível a ideologia é o fenômeno da alienação”, conquistado por meio de mecanismos que levem o homem a crer que suas condições reais de existência social não são objeto de sua própria construção, mas obtidas graças a fatores alheios à sua própria vontade, tais como religião, Estado, natureza, “sociedade” e tantos outros normal e naturalmente tratados na terceira pessoa.

O homem, sem se aperceber disto, ignora, por exemplo, o Estado como fruto de seu próprio convívio com outros seres da mesma espécie e passa a personificá-lo, alienando de si o próprio Estado, isto é, perdendo a noção do Estado como fato e o tratando como ente personificado alheio, além de seu próprio ser.

Ainda bebendo em CHAUI é possível dizer que não basta que a classe dominante conceba suas próprias idéias, sendo fundamental que consiga convertê-las em idéias comuns a todos, de tal forma que ninguém seja capaz de questionar a própria origem daquele modo de enxergar a vida.

Quando o trabalho de implantação da ideologia é bem feito ninguém é sequer capaz de imaginar que pensa e age de uma determinada maneira graças ao ideal de outra pessoa. Não é possível perceber a prisão e o estado de alienação a que se está submetido.

A esta altura é possível presumir que a forma de que se vale a classe dominadora para distribuir seus ideais é tomando, primeiro, os meios de comunicação. Presunção equivocada, pois ouso dizer, ainda na companhia de CHAUI, que além da utilização dos meios de comunicação disponíveis, essa distribuição é feita pelos costumes em geral, pela religião e, sobretudo, por intermédio da educação.


DA LINGUAGEM

Parece existir um certo consenso entre os estudiosos do tema no sentido de que o ser humano passa a se distinguir de outros animais (e até mesmo daqueles com características biológicas semelhantes) quando começa a fazer uso da linguagem. Um castor ou um joão-de-barro são capazes de construções relativamente complexas, com utilização de materiais encontrados na natureza; as abelhas possuem um sistema de sinalização capaz de permitir que o grupo localize flores e os primatas, de modo geral, tem condições de utilizar determinados objetos como ferramentas.

Nenhuma outra espécie, a não ser o homem, é capaz de objetivar sua subjetividade e permitir que outro homem tenha consciência do que a subjetividade alheia tentou expressar. É por meio da linguagem que a sociedade se faz, sendo inconcebível a existência de uma sociedade sem ela.

Concordo plenamente com BERGER e LUCKMAN quando afirmam “a vida cotidiana é sobretudo a vida com linguagem [...]” e que a compreensão da linguagem é “essencial para minha compreensão da realidade da vida cotidiana”.

Interessante estudo neste sentido é conduzido por PENNA, que chega mesmo a considerar que “o modo como percebemos o mundo é previamente delimitado pela estrutura lingüística da qual participamos”.

Demonstração de que o sujeito é dependente de uma estrutura simbólica que lhe antecede é fornecida por LEITE, que faço questão de transcrever por sua precisão cirúrgica:

Por exemplo, o nome que uma pessoa recebe ao nascer já tem um sentido dentro de uma cultura, um sentido preestabelecido, logo o sujeito significará seu nome com sentidos que não pertencem a ele. O sujeito será constituído por uma ordem simbólica que lhe é exterior, que já está aí e que lhe é constitutiva.

A linguagem interfere diretamente na formação do sujeito e na sua própria concepção do mundo e da realidade, pelo que não é descabido dizer que conquista um povo quem manipula sua linguagem.

Os motivos que levam alguém (indivíduo ou grupo) a essa busca podem ser os mais variados, mas na base de todos está a ideologia, a normalização de um comportamento social eliminando o outro, numa verdadeira relação de dominação.


EDUCAÇÃO

A pergunta que se faz, então, é o que é educação e para que se presta.

Segundo FUJITA, as primeiras escolas surgiram há aproximadamente 2.400 anos, mas é possível afirmar que desde o ano 4.000 a.C., quando os sumérios teriam desenvolvido a escrita cuneiforme, os pais já transmitiam este saber aos seus filhos.

Ainda conforme FUJITA as primeiras escolas, surgidas no Século 4 a.C., “eram locais onde mestres ensinavam gramática, excelência física, música, poesia, eloqüência, mas não existiam salas de aula no sentido atual”, como se faz notar a partir do Século 12, nos moldes em que criados por “instituições de caridade católicas que ensinavam a ler, escrever, contar e, junto, iam transmitindo as lições do catecismo.”

Sobre o papel da escola hoje, ouso transcrever trecho de artigo de ALMEIDA, que entendo cercar bem todo o tema:

Assim, podemos falar em funções instrucionais, precisamente a imagem mais freqüente da escola por parte da sociedade e das famílias (incremento da informação dos sujeitos, aquisição de conhecimentos curriculares), funções de desenvolvimento e de socialização (desenvolvimento de atitudes e competências, integração social), funções de custódia (suporte a uma família de número reduzido de elementos na qual ambos os pais trabalham, controle social), funções de certificação (empresas e outras instituições tomam os créditos, diplomas e certificados escolares na seleção dos seus quadros) e funções de estratificação social (toda a escolaridade, por níveis sucessivos de exigência e de seleção, é também uma forma de se estratificar uma sociedade).

 Nesta mesma linha de pensamento, se entendemos aprender como “construir conhecimento estável e com significado pessoal”, temos que considerar que “a escola e o professor estejam capazes de desenvolver nos alunos capacidades, atitudes e comportamentos de maior autonomia na regulação dos seus comportamentos escolares” e, mais do que isto, sociais.

Por qualquer ângulo que se observe a questão a resposta é uma só: a educação tem como fim transmitir a uma nova geração o conhecimento construído pelas gerações passadas e o meio de que se vale para isso é a escola.


A TRANSMISSÃO DA IDEOLOGIA

Para que uma classe dominada não seja sequer capaz de questionar o domínio da outra, uma das coisas que precisa ser controlada é sua forma de enxergar o mundo.

Ora, como dito acima, a estrutura lingüística de um povo é determinante na sua forma de perceber a realidade, de tal sorte que quem detém controle sobre a formação da linguagem detém, evidentemente, controle sobre a forma de percepção daquele indivíduo.

Se uma classe detém o poder é de se esperar que tenha controle sobre os meios de transmissão do conhecimento, podendo, assim, impor seu pensamento ideológico.

Se a esta altura eu perguntar ao mais atento leitor quem tem obrigação de dar educação às nossas crianças a resposta certamente será “o governo”, um ente que mesmo despersonalizado é tratado na terceira pessoa como se pessoa fosse.

É isso que faz a ideologia: deixar certo em nossas mentes que determinada coisa é normal e inquestionável.

O “governo”, como representante legitimado da classe dominante, sabe que é assim é cria estruturas administrativas incríveis para que nunca deixe de ser. Alguém é capaz de conceber a educação sem um Ministério da Educação? Uma Secretaria de Educação?

Está montada toda a estrutura para que a ideologia seja transmitida de forma pacífica e indolor.

O problema é que o açodamento de uns acaba interrompendo o fluxo normal, lento e gradual da transmissão da ideologia, levando gente a estirpe de um Arnaldo Niskier a dizer:

A cada dia somos surpreendidos com incríveis inovações na educação brasileira. Tudo é tão estranho que parece uma armação para que continuemos a patinar nas piores classificações internacionais de qualidade do ensino. Cresce a nossa economia, estamos na lista das dez maiores nações do mundo, chega-se a pensar na escolha do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, mas há como que uma força que impele a educação para trás.

Cabe a nós questionar: o que pretende “o governo” quando nos brinda com pérolas como livros escolares que ensinam que “nós pega o peixe” e “os livro ilustrado mais importante estão emprestado”?

Eu sinceramente não sei ao certo, mas não é difícil supor que detrás de uma inocente busca de se afastar um suposto preconceito lingüístico há uma escancarada tentativa de dominação, de imposição de uma ideologia, por meio do controle da linguagem.


CONCLUSÃO

Fica difícil afirmar com precisão o que se pretende com uma flexibilização exacerbada da linguagem, sobretudo quando isso surge a partir de um incentivo, transmitido na escola e com utilização de livros apoiados e fornecidos por quem detém a estrutura administrativa educacional, detendo, conseqüentemente, não só os meios de transmissão do conhecimento, como o próprio poder de normatizar esta transmissão, para que o código simbólico previamente estabelecido seja rompido.

A complacência lingüística seria uma forma de incutir uma complacência generalizada com tudo o que vem de cima?

Estaríamos diante de uma forma velada de flexibilização na nossa percepção da realidade, de modo que não exista diferença entre certo e errado e cada um possa fazer o que bem entende, desde que impinja ao outro a prática de bullying?

Ainda não fechei questão sobre o tema, mas por enquanto penso que aceitar que “nós pega o peixe” é negar que nós pegamos o peixe, o que me remete a LACAN, para quem “desde que existe grafia, existe ortografia”


REFERÊNCIAS

Imagem obtida em http://t3.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcQ2ABOC7LFbXfvjVyKrNyOVQcIU_UJLb2DhKe3jnuYgiLw9scC5mg

ALMEIDA, Leandro S.. Facilitar a aprendizagem: ajudar aos alunos a aprender e a pensar. Psicol. Esc. Educ. (Impr.),  Campinas,  v. 6,  n. 2, dez.  2002 .  

BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

CHAUI, Marilena. O que é ideologia. Brasília: Brasiliense, 1996.

FUJITA, Luiz. Qual foi a primeira escola? Artigo publicado no site Planeta Sustentável, de responsabilidade da Editora Abril. Disponível em http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/cultura/conteudo_289910.shtml. Acesso 27 MAI 2011.

LACAN, Jacques. Referência não identificada plenamente. Disponível em http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0610593_10_postextual.pdf. Acesso 31 MAI 2011.

LEITE, Márcio Peter de Souza. O simbólico. Artigo publicado no site Márcio Peter – Conexão Lacaniana. Disponível em http://www.marciopeter.com.br/links2/psilacan/psilacasimbolico.html. Acesso em 25 MAI 2011.

NISKIER, Arnaldo. Por uma vida pior. Artigo publicado no site do Jornal A Gazeta na Internet. Disponível em http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2011/05/noticias/a_gazeta/opiniao/859256-arnaldo-niskier-por-uma-vida-pior.html. Acesso em 27 MAI 2011.

PENNA, Antônio Gomes. Percepção e realidade. 7ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

2 comentários:

  1. Interessante você postar isso hoje. Ontem mesmo eu li um artigo do Ciro Marcondes Filho, jornalista e sociólogo, onde ele propõe um desvendamento do conceito de ideologia. Lá ele critica veementemente o marxismo e recorre a Castoriadis pra definir tal corrente como a que "permite às pessoas dizerem uma coisa e fazerem outra." Também propõe pro conceito de ideologia uma forma não-viciada de entendimento, saindo dos estereótipos "burguês x proletário", afinal, ideologia são as nossas práticas cotidianas, percepções, atitudes, costumes; tudo inerente ao ser humano.

    Sobre o livro do MEC, acho que houve um exagero da mídia a tratar o assunto. Pelo que sei, o livro não defende o "falar errado" em detrimento da norma culta. O que a autora diz é que é permitido, em determinadas ocasiões, usar de coloquialismo, até por questões sociais e regionais. O maior problema que eu vejo nisso é a dificuldade de fazer um aluno de 10, 11 anos entender que ele pode falar assim com os amigos, mas que não é certo em outras ocasiões. Como um professor, munido de um livro desse, pode ensinar seu aluno a falar e escrever corretamente, sendo que seu próprio objeto de estudo diz que não há problema em se utilizar do coloquialismo? Complicado.

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  2. Enquanto a gente acha que ideologia é posição política, o processo de naturalização vai acontecendo, imperceptível, silencioso, eficaz.

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